O lado obscuro da tecnologia nas bolsas

16/04/2012 07:23

Autores: Scott Patterson e Jenny Strasburg,

 

Para se ter uma ideia de como o mercado financeiro pode ser obscuro hoje em dia, veja o caso da Pipeline Trading Systems LLC.

Usando software desenvolvido em parte pela Fidelity Investments dez anos atrás, a Pipeline provê um meio de comprar e vender ações fora das bolsas de acesso público. Em seu sistema alternativo, grandes investidores seriam protegidos de uma espécie que muitos acham irritante: operadores que usam computadores poderosos para ver pedidos assim que eles surgem e negociar instantaneamente à frente deles.

O que muitos investidores que estavam usando a Pipeline não sabiam é que uma afiliada dela estava fazendo exatamente esse tipo de operações relâmpago.

Essa revelação, descrita num acordo judicial em fins do ano passado, foi uma dura lição de como o mercado acionário movido a computadores de hoje se tornou, sob vários aspectos, menos transparente do que quando a maioria das operações acontecia no pregão de uma bolsa.

Preços de títulos de investimento hoje em dia não são tão fáceis de enxergar para investidores. Menos de metade dos investimentos hoje é negociada em bolsa com cotação facilmente acessível, dizem analistas do mercado. Muitos investidores continuam sem conhecer as estratégias que firmas tecnologicamente espertas usam para ganhar vantagem, e mesmo grandes casas de investimento geralmente têm pouca garantia de que ninguém está tirando vantagem de suas ordens.

A SEC, como é conhecida a comissão de valores mobiliários dos Estados Unidos, está estudando os chamados operadores de alta frequência, examinando se alguns podem ter ganhado vantagens desleais por meio de seu relacionamento com as plataformas computadorizadas em que eles operam, tais como a Bats Global Markets Inc., a bolsa onde um defeito de software no mês passado matou sua própria abertura de capital. A investigação, por sua vez, deriva da atenção mais ampla das autoridades para operações computadorizadas, depois do "flash crash" ("quebra relâmpago") de maio de 2010, que derrubou as bolsas americanas sem razão evidente.

A Pipeline não é objeto da investigação da SEC. A firma e dois de seus executivos chegaram a um acordo com a agência em fins do ano passado, comprometendo-se, sem admitir nem negar as constatações da SEC, a não enganar clientes investidores da Pipeline sobre a maneira como as ordens são processadas.

A história da Pipeline, baseada em emails internos e entrevista com ex-operadores, clientes, executivos e autoridades, além das constatações da SEC, mostra como uma firma criada para oferecer um sistema de negociações que protegeria investidores contra os perigos do mercado eletrônico se transformou em algo que traz seus próprios riscos.

A Pipeline operava o que se conhece como "dark pool", uma expressão que une o adjetivo "escuro" ao termo em inglês que, além de piscina, também é usado para definir grupos de investidores. Trata-se de uma plataforma que une vendedores a compradores em privado, usando software para conectar suas ordens. A função crítica que faz uma dark pool proteger investidores é que as ordens deles não se tornam públicas antes de serem executadas.

As dark pools ganharam força conforme as bolsas de valores migraram de pregões humanos para operações eletrônicas em que quase todas as ordens são publicadas instantaneamente, uma situação que alguns investidores comparam com jogar pôquer com as cartas viradas para cima. A Pipeline prometia ajudar investidores a evitar os perigos. Ela oferecia "proteção contra predadores", conforme os anúncios da firma, um escudo contra os "tubarões" no mercado.

Hoje há mais de 50 dark pools, que respondem por 12% das negociações com ações nos EUA, ante 4% em 2005, segundo a firma de pesquisa Tabb Group.

Segundo a Comissão de Valores Mobiliários, não há "dark pools" no Brasil. Otavio Yazbek, diretor da CVM, disse que tem havido sondagens de interessados em abrir "dark pools" no país, mas as regras de transparência da agência para o mercado impedem o surgimento de "dark pools" no modelo tradicional americano.

O modelo da Pipeline nasceu no laboratório de tecnologia da Fidelity no início dos anos 2000. A firma de fundos mútuos buscava formas de negociar grandes blocos de ações fora do mercado público, onde temia que operadores oportunistas pudessem saltar adiante de suas grandes ordens, afetando as cotações. Havia alguns sistemas alternativos, mas a Fidelity queria fazer um melhor, disse um ex-executivo. Programadores da Fidelity colaboraram com Fred Federspiel, um físico que havia levado seus conhecimentos para Wall Street.

No sistema que desenharam em conjunto, quando um investidor fazia um pedido, o símbolo da ação acenderia em alaranjado nas telas dos computadores dos investidores que integravam o grupo, ou "pool". Mas ele não mostraria se o pedido foi para comprar ou vender, em que quantidade ou a que preço.

A Pipeline alugou software da Fidelity e abriu um escritório em Nova York, tendo Federspiel como diretor superintendente. A controladora da firma, que pertencia em parte a várias firmas de capital de risco, nomeou como presidente do conselho Alfred Berkeley III, um ex-executivo da bolsa eletrônica Nasdaq com conexões e reputação que poderiam atrair investidores.

Um amplo fluxo de pedidos era fundamental para a Pipeline dar certo. Executivos da empresa esperavam que a Fidelity a usasse para boa parte de suas transações, mas logo antes de a Pipeline entrar em operação, em setembro de 2004, ficou claro que receberia só algumas ordens da Fidelity.

Sem garantias de um volume substancial, a firma dona da Pipeline, a Pipeline Financial Group Inc., deu um passo fatídico: criou uma empresa de negociação interna que assegura que as ordens são realizadas. Se um investidor quisesse comprar certas ações e não houvesse vendedores das mesmas na "dark pool" da Pipeline, essa afiliada poderia tentar cumprir a ordem comprando ações no mercado aberto.

Não há sinais de que a Fidelity soubesse da existência dessa afiliada. "Nosso contrato com a Pipeline Trading Systems se limitava ao licenciamento de propriedade intelectual", disse um porta-voz da Fidelity.

A Pipeline planejava eliminar sua afiliada de trading quando o volume fosse suficiente, disseram pessoas familiarizadas com a firma. Mas, nesse ínterim, embora a Pipeline tenha revelado que afiliadas não especificadas poderiam estar usando a "dark pool", ela disse várias vezes a clientes que eles estavam negociando com outros grandes investidores, aos quais se referia como compradores e vendedores "naturais", segundo a SEC.

Nunca houve suficientes compradores e vendedores naturais. Os operadores da afiliada foram instruídos a evitar usar os mesmos elevadores dos empregados da Pipeline, muitos dos quais nem sabiam dela, disseram pessoas a par do assunto. "Tomamos todas as precauções que podíamos" para não revelar o relacionamento com a Pipeline, disse Gordon Henderson, que chefiou a afiliada em anos recentes.

A Pipeline, a princípio, batizou a afiliada de Exchange Advantage LLC. Executivos depois consideraram dar a ela um nome que obscurecesse suas atividades, disseram a SEC e pessoas a par do assunto. O nome acabou virando Milstream Strategy Group ("mil" é um jargão de Wall Street para um décimo de um centavo).

A princípio, ela operou com prejuízo. Mas, em 2006, a Pipeline transferiu as rédeas da afiliada a Henderson, um empregado da Milstream com vasta experiência em Wall Street, e o autorizou a contratar pessoal e fazer mudanças para reduzir perdas e tornar as operações mais lucrativas, segundo pessoas a par do assunto.

"Praticamente fizemos dela uma trading real", disse Henderson ao The Wall Street Journal.

Ele contratou vários traders, a maioria pessoas com pouca experiência mas com ligações com a Pipeline. "Todo mundo que contratei tinha um relacionamento" com a Pipeline via parentes ou amigos, disse Henderson. "Nenhum trader que contratei tinha experiência com operações de tesouraria. Tive de treiná-los."

Entre os contratados estava seu filho adotivo, Tom King, um advogado. Henderson disse que achou que seria mais fácil punir empregados que cometessem erros se fossem parentes. "Adoro nepotismo", disse ele.

Traders da Milstream logo acharam meios de lucrar com ordens de clientes da Pipeline, disse uma pessoa familiarizada com a operação. Eles tinham a ajuda de um sofisticado sistema de negociações velozes desenhado em parte pelo primeiro diretor da afiliada, Henri Waelbroeck, que, assim como Federspiel, é físico. Waelbroeck não quis comentar.

O processo de trading dependia de perceber - quando o símbolo de uma ação aparecia em laranja no software dos investidores, conhecido como Block Board - se a ordem era para comprar ou vender. Para isso, a Milstream usava várias técnicas, tais como checar a demanda para aquela ação em outras "dark pools". A Milstream também fazia e, em seguida, cancelava ordens para testar o interesse dos clientes da Pipeline numa ação, afirmou a SEC.

Certos passos dados pela Pipeline facilitaram a vida da Milstream, segundo a SEC e pessoas a par das operações da firma. Por exemplo, um link eletrônico especializado para a Milstream fazia com que, quando uma ordem era aberta, a afiliada poderia ser informada sobre ela não apenas visualmente, mas também através de dados enviados por uma conexão.

Isso ajudou a afiliada a montar um banco de dados que acompanhava o tempo exato em que uma ação permanecia em laranja, assim como certas informações de preço, informou a SEC. Embora a Pipeline oferecesse o link para outros clientes, poucos o usavam e nenhum o usava como a Milstream: para negociar extensivamente e todo dia na Pipeline.

Além disso, Federspiel "encorajou a Afiliada a abrir ordens em ações ou categorias de ações específicas que Federspiel achava que interessariam a clientes da Pipeline", afirmou a SEC, enquanto "outras vezes, Federspiel e outros empregados da Pipeline telefonavam para a afiliada durante o dia para pedir à Afiliada que negociasse certas ações". Handerson disse que ele e Federspiel conversavam diariamente depois do fechamento do mercado. Federspiel não quis comentar.

A SEC disse que a Pipeline não manteve a confidencialidade da informação referente a seus clientes, permitindo que a afiliada soubesse às vezes que pedidos vinham de "um dealer" ou de um cliente que era "agressivo" ou "passivo". Um porta-voz da Pipeline, que recentemente passou a se chamar Aritas Securities LLC, disse que não houve troca inapropriada de "informações de ordens pertinente a clientes" entre a Pipeline e a Milstream.

Para a afiliada, a combinação de tecnologia, seus laços com a Pipeline e um bom tato para o mercado, desenvolvido através de constantes operações contra clientes da Pipeline e via técnicas sofisticadas, permitiu à Milstream melhorar sua avaliação dos pedidos de clientes da Pipeline.

Quando concluía que uma ordem para uma determinada ação era para comprar, a Milstream geralmente comprava tais ações em outro mercado e logo as usava para atender ao pedido do cliente, disseram a SEC e pessoas familiarizadas com a operação.

Se a Milstream achasse que o cliente da Pipeline queria vender a ação, ela geralmente vendia primeiro, tomando emprestado ações de uma corretora e vendendo a descoberto. Então a Milstream comprava as ações do cliente - realizando assim a ordem de venda - e usava as ações que acabou de comprar para fechar sua posição a descoberto, segundo a descrição da SEC e essas pessoas familiarizadas com a afiliada.

O problema era que negociar primeiro pode afetar o preço: comprar a ação antes de a ordem de compra do cliente ser atendida pode elevar a cotação, criando o risco de o cliente obter um preço menos favorável - exatamente o que investidores querem evitar ao usar uma "dark pool".

"Em qualquer operação, quanto melhor o preço que o cliente recebia, pior o preço que a Afiliada recebia, e vice-versa", disse a SEC.

Grandes investidores geralmente querem o mínimo de movimento na cotação de uma ação entre o momento em que fazem uma ordem e quando ela é preenchida. Mas o movimento na cotação ficava maior quando a ordem era preenchida pela Milstream, segundo a SEC, do que nos casos bem mais raros em que eram preenchidas na maneira como a "pool" anunciava: por um casamento com a ordem de outros clientes da Pipeline.

A Pipeline tinha seu próprio método de medir a qualidade do atendimento das ordens dos clientes. O método considerava quanto a cotação variou nos 20 minutos em torno do momento em que a ordem foi atendida. Por essa medida, a firma executava bem as ordens dos clientes, sem grandes oscilações de preço, disse o porta-voz da Pipeline.

O porta-voz acrescentou que o sistema foi desenhado para alinhar os interesses dos operadores da Milstream com os clientes da Pipeline, e "incentivava os operadores a prestar execuções de alta qualidade". A SEC, apesar de admitir esse incentivo, disse que os pagamento dos operadores também era baseado na lucratividade de suas operações.

Henderson disse que ele considerava a Milstream uma mesa de operações de Wall Street independente e não estava focada na satisfação dos clientes da Pipeline. "Eu não ligava para esses clientes", disse ele. "

A Milstream teve US$ 18,4 milhões em lucros com trading em 2008, segundo a SEC, seguido por US$ 9,3 milhões em 2009 e US$ 4,5 milhões em 2010. Dadas suas despesas, e levando em conta as perdas com operações em seus primeiros anos, a afiliada teve prejuízo líquido em sua existência.

A SEC havia sido informada de vários detalhes das atividades da Milstream por um denunciante, disseram pessoas a par das investigações, e em 24 de outubro anunciou um acordo para encerrar o inquérito.

A SEC disse que a Pipeline executava a vasta maioria das ordens de seus clientes não pela estrutura da "dark pool", mas pela sua afiliada de trading, "uma firma de alta frequência". A agência mandou a firma parar de dar informações errôneas aos clientes.

A Pipeline aceitou uma punição de US$ 1 milhão e Berkeley e Federspiel aceitaram pagar US$ 100.000 cada, sem admitir ou negar as alegações da SEC. O porta-voz da firma disse ao WSJ que "a Pipeline concorda que informou mal os clientes". (Colaborou Paulo Trevisani).

 

Fonte: Valor, 16/04/2012