Falta combinar com os “russos”

31/05/2014 11:00

Autor: Silvio Queiroz

 

Os emissários europeus relutam em admitir com todas as letras, mas o desempenho da ultradireita nas urnas, na renovação do Parlamento Europeu, no último fim de semana, coloca em xeque as chances de um acordo de abertura comercial com o Mercosul. A novela se desenrola há mais de uma década e parecia caminhar para algum tipo de desfecho… até que Marine Le Pen (foto), a dama da Frente Nacional francesa, e seus correligionárias de outros países que evocam a Europa dos castelos fortificados roubaram a cena e saíram como os vencedores “morais” da eleição para a renovação do Parlamento Europeu. Se não apenas pelas cadeiras conquistadas, insuficientes para qualquer obstrução efetiva, o ensosso político claro obtido pelas legendas ditas “eurocéticas”, inclusive as de extrema esquerda, parece ter sido suficiente para colocar os governantes do bloco com as barbas de molho.

É algo que ficou claro, durante a última semana, em conversas mais reservadas com os emissários europeus em Brasília. Embora não batam a porta para a possibilidade de novos acordos comerciais, como os que estão atualmente em negociação com o Mercosul e os Estados Unidos, os representantes da União Europeia deixam compreensível, nas entrelinhas, que a chance de abrir os portos entre o norte e o sul do Atlântico terá de esperar mais outro tanto. Na prática, a renovação da Comissão Europeia, por lá, e a entrada do Brasil em temporada eleitoral, por aqui, tornam incontornável um meio-tempo nas negociações.

O problema, no caso, é que, como no verso de Cazuza, o tempo não para. Enquanto UE, EUA e Mercosul enfrentam cada qual os próprios impasses, outros polos da economia mundial se movimentam. Mais notavelmente, Rússia e China vêm de fechar uma parceria energética com potencial para desequilibrar as atuais relações internacionais no setor.

Mal comparando, e aproveitando que a Copa do Mundo está a praticamente 10 dias, vale lembrar a tirada atribuída a Garrincha, durante preleção do técnico Feola para o jogo com a então União Soviética, na Copa de 1958: “Falta combinar com os russos”.

Quem avisa…
Na última semana, em um encontro informal com jornalistas, diplomatas de um dos países europeus mais empenhados (e interessados) em um acordo comercial com o bloco sul-americano foram claros em indicar que “a janela de oportunidade está se fechando”. Foram reticentes em admitir as dificuldades que devem advir da eleição de uma bancada representativa da extrema-direita protecionista para a próxima legislatura do Parlamento Europeu. Mas, dentro dos constrangimentos inerentes à função, eles mandaram um recado claro ao governo brasileiro: é melhor que Mercosul e UE cheguem a bom termo antes que se feche um acordo UE-EUA. E, embora não tenham sido descuidados a ponto de sugerir alguma interferência no processo sucessório, os emissários da UE insinuaram com razoável desenvoltura que prefeririam amarrar um acerto antes de outubro.

Chorar por quem?
No jogo de empurra que se prolonga por uma década, no qual europeus e sul-americanos responsabilizam sempre ao outro pelo inventário de frustrações na busca de um acordo comercial, ficou evidente há algum tempo que elegeram a Argentina como vilã do processo. Mas, conforme a conversa se estende, eles próprios reconhecem que também no time de Bruxelas há quem jogue contra. Só não chegam ao ponto de revelar quem seria a “Argentina” deles.

Na estrutura orgânica da UE, complexa e hipertrofiada a ponto de ser identificada como um dos fatores que estimulam o voto de protesto dito “eurocético”, as diferenças e divergências entre os diversos governos nacionais são apenas um dos fatores de impasse. Quando se percorrem os corredores e gabinetes do imponente QG europeu, no centro nobre da capital belga, um outro plano de encaixes se desvela. Por exemplo, fica sempre flagrante o choque de interesses entre as direções gerais de indústria e de agricultura — a primeira, sempre solícita às demandas do Mercosul por abertura de mercado para seus produtos primários; a segunda, zelosa pelos interesses dos produtores europeus.

Pelas beiradas
Com ambos os lados, aparentemente, resignados à ideia de que será inevitável esperar o ano que vem para (possivelmente) retomar a sério qualquer empreitada, o Brasil tem como opção retomar a “tática mineira”, de comer pelas beiradas o mingau quente. Nas frestas oferecidas pela regulação de cada um dos blocos, há espaço para ampliar e estender relações comerciais em bases bilaterais, de país a país ou mesmo entre a UE e um de seus poucos parceiros estratégicos.

 

Fonte: Correio Braziliense, 31/05/2014